quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Analista de fogão

Post sugerido pela aluna
Helen Longhi Wagner
Mestre em Psicologia-UFRGS
hell.wagner@gmail.com

A cozinha nada mais é que um consultório de psicanálise, em que a mesa faz o papel do divã; e o fogão, um instrumento da terapia

Por Maria Victória, do Bistrô Montagu, Rio de Janeiro
Fotos Alexandre Landau

“Aprendi a cozinhar desde que me entendo por gente. Venho de uma família ‘temperada’. Minha avó, criatura generosa nas risadas e na culinária, foi a responsável por muitos de meus carros- chefes na cozinha. Até hoje me lembro do pudim de frutas secas que chegava majestoso à mesa natalina, envolto em chamas azuladas de conhaque, a calda escorrendo pelas beiradas, exalando especiarias e ternura, que me faziam calar com respeitoso assombro. Minha mãe, embora não fosse uma entusiasta das panelas, tinha mãos de padeiro. É forte a lembrança do aroma de um almoço dominical em casa. Ela sempre fazia um lanchinho especial. Tinha waffles e, outras vezes, uma rosca dourada recheada de goiabada. Havia também apple crisp, minha preferida: torta de massa crocante, com maçãs bem cozidas, envoltas em canela, que mamãe servia quentinha, com sorvete de creme, e me fazia suspirar de prazer.

Meu pai, intrigante mistura de poeta, intelectual, professor e cozinheiro, adorava ler e cozinhar. Ficava na cozinha noite afora, de avental, com uma pilha de pelo menos cinco livros de receitas e uma garrafa de bom uísque. Dentre seu acervo culinário, uma de minhas receitas favoritas era o pernil de porco assado, fruto de exaustivas pesquisas que iam de Carême (Marie-Antoine Carême, um dos pais da culinária francesa) ao pernil assado nas fazendas de sua terra, Goiás.

Ele se tornou cosmopolita, mas não esconde o orgulho de sua origem e para lá nos levava nas férias. Era uma comilança só. A começar pela viagem, íamos de carro, passávamos por Minas Gerais e parávamos em uma churrascaria para comer assados suculentos com farofa, acompanhados de litros de refrigerante que, na época, eram o nirvana gastronômico para mim.

Na volta a conversa era outra. A parentada se encarregava de nos abastecer com biscoitos de queijo, pães de queijo, pamonhas cozidas e, o melhor de tudo, empadinhas de capa podre. Essa era uma versão em miniatura do empadão goiano, receita regional feita com uma massa que se assemelha à de pastel. As empadinhas eram suculentas e sua massa úmida escondia um recheio repleto de carnes e temperos.

Minha mãe aprendeu a fazê-las, e as tais empadinhas viraram marca registrada dos almoços lá em casa. A receita cobiçada foi guardada a sete chaves como um tesouro.

E, dentre todas as lembranças com as minhas irmãs, guardo ainda os momentos da adolescência, as madrugadas de sábado, quando minhas irmãs e eu nos reuníamos, cada uma chegando de um programa ou festa, para um papo de cozinha. Começou do nada. A gente chegava sempre com fome e, para os adolescentes, a vida nada mais era que uma árdua guerra pessoal contra os hormônios desgovernados e competidores desleais pelo prêmio da supremacia social, em que as mais cruéis batalhas são travadas nas noites de sábado.

De colherada

O ritual era sempre o mesmo: quem chegasse primeiro fazia o brigadeiro. O sabor variava conforme o capricho de quem o fazia – algumas vezes de chocolate, outras vezes de gemas. Derramava na tigela e ficava com a rapa. Quem chegasse depois pegava uma colher e comia.

Eu bem me lembro, a gente tirava o sapato e esticava as pernas na cadeira. Sentadas em volta da mesa, entre voluptuosas colheradas, dávamos risadas, contávamos casos, às vezes discutíamos, outras vezes nos consolávamos. Ou, então, permanecíamos num silêncio compartilhado que parecia ter sido combinado. Com o tempo, ficou implicitamente decidido que meu brigadeiro era o melhor. Minha mãe estabelecia regras severas de horário e chegávamos mais ou menos na mesma hora. Se eu chegasse por último, elas ficavam me esperando. É claro que me aproveitei da vantagem para garantir a rapa.

Volta e meia meu pai aparecia, sempre com um ar reprovador, para ver se todas já haviam chegado e, normalmente, retirava-se sem dizer uma palavra. Uma noite, em meio à conversa, fomos interrompidas por ele, com um olhar sinistro, munido de uma daquelas bombas manuais de inseticida. Silenciosamente, rodou toda a cozinha, bombeando aqui e ali, totalmente alheio à nossa presença. Ao final, parou na porta, fitou-nos com os olhos muito azuis e disparou sombriamente: ‘Praga bíblica! Animal pré-histórico! Barata, criatura inextirpável!’ Em seguida, retirou-se. A gente se olhou sem entender nada e continuou a comer.

A cozinha era grande, a mesa ficava no centro. O doce era quentinho, macio e escorregava pela boca, ocupando todos os espaços internos. Era uma sensação confortável, a conversa, o doce, as risadas, as confidências, os sonhos, o sono. A gente ia dormir com a alma e a barriga satisfeitas.

Poucos prazeres na vida superam o simples fato de se sentar à mesa da cozinha, não importa a hora, e compartilhar brigadeiro, pipocas, sanduíches mirabolantes, ideias, expectativas, sentimentos e nossos momentos, os bons ou os ruins. Na cozinha não há espaço para formalidades ou cerimônia. É onde a gente se senta com um amigo para tomar um café e desafogar as tristezas, contar um caso ou trocar confidências. Era o porto seguro para onde eu corria quando chegava da escola com o estômago vazio, atraída pelos aromas irresistíveis dos refogados.

Mesa como divã

A cozinha foi o consultório de psicanálise da minha adolescência, onde a mesa fez o papel do divã, o fogão foi um instrumento da terapia, e eu fui ora a terapeuta, ora a paciente. Lá, entre colheradas de brigadeiro, derramei as tormentosas lágrimas das primeiras ilusões românticas desfeitas, dei vazão aos turbulentos e passageiros sentimentos da juventude, dei as gargalhadas mais escandalosas, tomei as decisões mais absolutas, sofri as primeiras angústias e enfrentei minhas inseguranças. Analista de fogão, quem não o foi.

Hoje em dia, já não há cozinhas grandes, com lugar suficiente para a mesa. As novas são planejadas, todos os espaços ergonomicamente aproveitados por designers, perfeitamente integradas ao ambiente. Nelas, a gente se senta em bancos altos, entre um micro-ondas e um processador. Não há lugar para uma mesa, daquelas de fórmica, brancas ou coloridas ou, então, de madeira, porque já não há tempo para um papo de cozinha.

Mas tenho em minha imaginação uma cozinha grande, com uma mesa enorme. Ali, ainda sou adolescente e tem sempre um brigadeiro quentinho me esperando. É para lá que vou quando estou triste. É lá que me sento, dou risadas, sou feliz. E cheguei à conclusão de que me tornei a pessoa que sou pelo que comi.”
PERNIL DE PORCO COM BATATAS-DOCES CARAMELIZADAS
10 porções

4 litros de salmoura (1/2 xícara (chá) de sal grosso, 1/2 xícara (chá) de açúcar e 4 litros de água); 3 dentes de alho inteiros 2 talos de aipo picados; 2 folhas de louro 1 pernil de porco de cerca de 4 kg, com a capa de gordura; 1 garrafa de vinho tinto seco; 1 maço pequeno de tomilho; 1 cenoura média picada; 1 cebola média picada; 1 alho-poró picado; sal, pimenta-do-reino e pimenta-da-jamaica em grãos a gosto

Batata-doce caramelizada

2 kg de batatas-doces; 200 g de manteiga
300 ml de melado ou mel de engenho
100 ml de cachaça de boa qualidade 1 pau de canela; sal a gosto

Pernil

1 Deixe o pernil de molho na salmoura, na geladeira, por 4 horas, no mínimo; escorra totalmente a salmoura. 2 Misture os legumes, as ervas e as especiarias e disponha-os numa assadeira bem funda. 3 Coloque o pernil, com a capa de gordura para cima, sobre a mistura de legumes e derrame o vinho tinto, quantidade suficiente para cobrir quase todo o pernil e que fique somente a capa de gordura de fora; se não quiser usar só vinho, acrescente água até obter o volume necessário. 4 Leve para assar em forno médio e sempre acrescente algum líquido à medida que este for secando; asse por cerca de 3 horas ou até que, espetando um garfo, saia um líquido de cor clara. 5 Retire-o do forno, transfira-o para uma assadeira rasa, reserve o líquido de cozimento e tempere com sal e pimenta. 6 Volte o pernil ao forno por cerca de 10 a 15 minutos para dourar; retire do forno e deixe descansar por cerca de 20 minutos antes de fatiar. 7 Peneire o líquido, reserve-o e transfira-o para uma panela para reduzir, com uma colher, retire o excesso de gordura e as impurezas e deixe ferver até que comece a adquirir a consistência de xarope; verifique o tempero.

Batata-doce caramelizada

1 Descasque e corte as batatas em palitos grossos; tempere-os com sal e pimenta. 2 Numa panela de fundo grosso, coloque a manteiga, espalhe uma camada de batata e regue com o melado; repita a operação até terminar as batatas. 3 Regue com o restante do melado, derrame a cachaça, acrescente o pau de canela e leve para cozinhar em fogo brando, regue sempre com o líquido do fundo da panela para não ressecar e deixe até que fiquem macias e douradas.
MontagemSirva o pernil fatiado com molho reduzido e batata-doce caramelizada.

EMPADINHAS DE CAPA PODRE
36 porções

Massa2 xícaras (chá) de farinha de trigo1/3 de xícara (chá) de manteiga*; 1 ovoSalmoura feita com 7 colheres (sopa) de água e 1 colher (chá) rasa de sal

Recheio

400 g de frango assado e desfiado300 g de carne de porco cortada em cubos pequenos; 200 g de palmito cortado em cubos200 g de ervilhas congeladas; 50 g de azeitonas pretas picadas 2 colheres (sopa) de óleo*2 colheres (sopa) de salsa picada1 colher (sopa) de coentro picado1 colher (sopa) de extrato de tomates3 tomates sem pele e sem sementes2 alhos picados1 ou 2 pimentas-bode picadas1 cebola picada1 folha de louro(*) a receita original leva banha de porco.

Massa1 Coloque a farinha em uma tigela de metal, acrescente os outros ingredientes e trabalhe a massa até ficar bem lisa. 2 Embrulhe em filme plástico e deixe descansar na geladeira por 1 hora. 3 Enfarinhe uma superfície e abra a massa com um rolo de papel; corte rodelas de cerca de 8 cm de diâmetro para forrar as forminhas e outras de 5 cm de diâmetro para as tampinhas. Dica da chef: Podem-se usar um pires e uma xícara de café como molde.

Recheio

1 Numa panela, aqueça o óleo e junte a carne de porco aos poucos; refogue até dourar. 2 Junte a cebola; refogue. 3 Acrescente o alho, o louro, as pimentas, os tomates e extrato de tomates e deixe a carne cozinhar até ficar macia; se necessário, vá pingando água aos poucos para que o líquido não resseque. 4 Quando a carne de porco estiver cozida, acrescente os outros ingredientes e refogue ligeiramente; verifique o tempero. Dica da chef: O recheio deve ficar úmido, ainda com molho.

Finalização

1 Forre o fundo das forminhas com a rodela maior, coloque 1 colher (sopa) de recheio frio. 2 Pincele as bordas com um pouquinho de água e aperte a tampinha para colar. 3 Pincele as empadinhas com ovo batido e leve a assar em forno médio.

APPLE CRISP
6 porções

1 xícara (chá) de farinha de trigo1 xícara (chá) de açúcar branco1/2 xícara (chá) de açúcar mascavo1/2 xícara (chá) de geleia de damasco peneirada e morna 1/4 de xícara (chá) de amêndoas tostadas e picadas (ou castanha-de-caju)1 colher (chá) de fermento5 maçãs vermelhas descascadas e cortadas em fatias; 1 ovo; suco de 1 limão1 pitada de sal; canela em pó e manteiga sem sal em pedacinhos a gosto

1 Preaqueça o forno e unte generosamente uma forma de torta de fundo removível. 2 Misture o açúcar mascavo com o limão. 3 Passe as maçãs por essa mistura e arrume-as no fundo da forma de torta (fundo removível) e polvilhe canela generosamente. 4 Em uma tigela grande, misture com a colher a farinha, o açúcar, o sal, o fermento, a amêndoa e 1 colher de sobremesa de canela. 5 Acrescente o ovo e misture-o aos poucos, delicadamente, com um garfo, ou com as mãos até formar um farofão. 6 Espalhe essa farofa sobre as maçãs, salpique pedacinhos de manteiga e asse até dourar. 7 Desenforme quente, pincele com a geleia. Dica da chef: Sirva imediatamente, acompanhado de sorvete de creme.

Receitas de Maria Victória, chef do Bistrô Montagu, Rio de Janeiro, RJ
Fonte: Prazeres da Mesa on line

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